"A hero?na Latifa" Um conto de Thayara Martins.

12/11/2013 15:38

 A heroína Latifa 

 
Eu me chamo Latifa, mamãe escolheu esse nome por causa de uma novela em que a irmã da 
heroína se chamava Latifa Saher. Como mamãe adorava essa personagem! 
Ela estava grávida quando Latifa quase perdeu seu marido para uma segunda esposa e quando 
a bela mulher de cabelos negros conseguiu dominar os impulsos do marido e reconquistá-lo, 
mamãe decidiu que eu seria a heroína Latifa do nosso miserável vilarejo. O mundo de mamãe 
era assim mesmo, bem simples – conquistar um bom homem para proteger e sustentar a 
família. Afinal o que uma mulher analfabeta, nascida e crescida no campo, acostumada a fome 
deseja além de filhos rechonchudos e sorridentes¿ 
Na beira do fogo, ela me colocava no colo, acariciava meus cabelos sujos e cantava 
provocando o ciúme de meus outros quatro irmãos mais velhos. Um dia papai foi para longe, 
um corte de madeira surgiu em outra região, os gêmeos tinham nascido, éramos 7 agora, 
muitos choros, brigas, caxumbas, cataporas e pratos... Papai partiu. 
Cinco anos depois, mamãe nunca sorria, cabelos quase sempre bagunçados, 12 quilos mais 
magra, gêmeos doentes, e nós, mais velhos, trabalhávamos com ela na lavoura. Apesar do 
trabalho, adorava o campo, o cheiro do orvalho nas flores ao amanhecer, as pessoas ao redor, 
tudo ali era agradável, tinha um sabor doce, era quieto e aconchegante, como se fosse a minha 
própria toca do coelho. 
“Que saudade”... 
Naquela tarde tia Izabel chegou com a cara de abacate estragado de sempre, mamãe chorava 
de cócoras.. Corri até ela que me apertou e desabou no chão me abraçando forte. Não sei por 
que, tinha que ir com a tia.. Pra quê¿ Por quê¿ 
Na cidade tinha uma boa oportunidade para uma mocinha de doze anos como eu, uma velha 
senhora enferma precisava de uma empregada, rápida e calada. 
 “É você!” – disse a abacate azedo... 
Nunca mais vi mamãe. 
Um tapa na cara, uma gargantilha apertada no meu pescoço com um longo cordão, cajal nos 
olhos e laque nos cabelos marcaram meu primeiro dia com a senhora Savana, que não era tão 
velha e ainda servia a alguns clientes. Minha primeira menstruação tinha vindo uma semana 
antes, foi o sinal para sra. Savana, estava na hora do leilão, 500 contos ela conseguiu apurar – 
a danada. “Imagina, duas semanas atrás a menina dos cachos só rendeu 165!” . 
Sra. Savana falava que eram meus grandes olhos arredondados em uma pele alva, parecia 
mesmo era a nova Capitu! Que maravilha! Hahaha Todos riam e festejavam na festa que 
seguiu o leilão. 
 
Assim se deu meu rito de passagem, sem conselhos, sem abraços carinhosos, sem mamãe... 
sem nada, além de medo.. 
- Vadia! 
Sim, um dos meus nomes além de Latifa e Capitu, bem, mas ‘esse’ homem, esse mesmo que 
acabou de me gritar, ‘esse’ não me chama mais assim! 
Longos 8 anos depois, Sra. Savana não manda mais em mim, sou minha própria empresária, 
sim senhor! Alugo meu quartinho, recebo até a hora que quero com todo o dinheiro pra mim e 
vou vivendo, até tenho um namorado! As invejosas, é claro, dizem que ele está comigo por 
causa do dinheiro que faço, mas não acredito nelas, ele me ama. Assim que aprender a ler e 
escrever vou poder arrumar um emprego em um escritório, de secretária ou recepcionista, 
vamos ter nossos filhos, nossa casa, seremos as pessoas mais felizes do mundo, ah seremos.. 
E sobre ‘esse’ sujeito imundo que acabou de me surrar, jamais, nunca meus filhos ouvirão uma 
palavra! Nem ele, tampouco, vai pronunciar uma.. 
Todos os dias, eu saio do quartinho e caminho toda a viela até chegar na rua principal, paro e 
espero o cavalheiro me tirar para a ‘dança’, uns são gentis, por muito pouco não me apaixono, 
porque mulher é boba, outros são rudes e apressados, mas alguns são estúpidos e nada de 
bom se pode esperar deles. Às vezes vou até a praça na avenida, mas é muito perigosa, um 
ponto muito disputado, não me arrisco muito tempo e volto para a minha rua. Depois de 
apanhar feio na avenida nunca mais voltei para me demorar, é a vida. Também peguei 
hepatite no inverno, acho que de um cara, então com 18 anos, que veio ter sua primeira vez 
porque não conseguia nenhuma menina no colégio de tão tímido. Ele me viu na porta de uma 
creperia, tivemos um caso, eu me empolguei e quando ele sumiu me senti muito mal, tanto 
que fui ao posto de saúde.. 
Só sei que ainda estou fraca então não saio da minha rua por qualquer 50 contos a mais. 
 8 anos, 8 anos nessa vida.. Suportei o que hoje não pude mais.. Depois que ‘esse’ verme me 
xingou, me humilhou, me bateu, ele teve o que mereceu, o que procurou.. Sou mulher, mas 
não sou mula de carga! Sou analfabeta, mas não sou bicho! 
 A faca enfiada nas suas entranhas vai ensinar isso! 
Mamãe, perdão... 
 

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