O questionamento do existir na cidade a partir de uma ocupação cultural no Distrito Federal.Por Webert Da Cruz

12/06/2020 10:36

 

Capítulo 1

by  | Nov 19, 2018

Sonhar e construir outra cidade

Taguatinga, Brasil – “Imagina o que acontece com uma loja fechada há mais de 15, 20 anos?”. Este é um dos questionamentos feito pelo mímico e arte-educador Abder Paz (31) sobre os oito espaços que o coletivo cultural Mercado Sul Vive (MSV) ocupou há mais três anos na cidade. Lojas abandonadas que, antes, segundo o artista, geravam problemas de saúde, segurança e outros transtornos na comunidade do Mercado Sul.

 

Abder atua no Beco da Cultura, como também é conhecida a localidade, há cerca de 11 anos. Nascido em Taguatinga, 25 km de Brasília e terceira maior região administrativa do Distrito Federal, o artista vive e conhece bem o cotidiano e necessidades do lugar. Assim como ele, outras pessoas que participam das movimentações cotidianas do Beco reivindicam a desapropriação de alguns imóveis que estavam em ruínas no conjunto de três blocos enfileirados de 28 lojas cada um.

 

O MSV tem se consolidado por meio das dinâmicas provocadas pela ocupação. O movimento reúne artistas, produtores, comunicadores e, inclusive, moradores do Mercado Sul. No início eram cerca de 30 ocupantes que, diante de uma realidade de abandono do poder público e do domínio do capital imobiliário, se organizaram e partiram para ação.

 

Essa diversidade de atores e atrizes reivindicam moradia, trabalho e o direito ao uso cultural dos espaços abandonados, que antes limitavam grandemente a preservação do bem estar da vida comunitária local.

 

O artista conta que por meio da ocupação, “o MSV tem se posicionado politicamente no entendimento de que a propriedade deve cumprir uma função social e cultural”. Para isso, buscam amparo no Estatuto da Cidade, um dispositivo legal que ainda não foi regulamentado no DF.  

 

 

O que é o Estatuto de Cidade?

O Estatuto da Cidade é o nome dado a Lei n° 10.257 de 10 de julho de 2001, no qual regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Esse documento “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.” – Lei 10.257 Governo Federal.

 

Logo nos primeiros dias da abertura das portas, o coletivo MSV foi abordado por uma ação judicial de reintegração de posse do empresário Josmar da Costa (69), proprietário das lojas. No entanto, essa reintegração de posse não ocorreu. Diversos erros administrativos e jurídicos da abordagem impediram isto e, até hoje, o processo corre a passos lentos. As pessoas do movimento de ocupação continuam utilizando as lojas, realizando atividades culturais, educativas e ecológicas.

Lugares e suas retomadas

A ocupação surgiu três meses após o término de um coletivo de grupos de nome parecido, o Espaço Cultural Mercado Sul (ECMS). Este coletivo alugou duas lojas na comunidade por três anos , movimentando atividades ocorrendo diariamente.

Abder conta que com esse espaço foi garantido o funcionamento das ações dos vários coletivos que integravam o ECMS: Casa Moringa, Coletivo Motirõ, Gunga, Eu Livre e o Grupo de Capoeira  Semente do Jogo de Angola. O espaço supriu uma carência momentânea de lugar fixo para atividades culturais. Na época, o Ponto de Cultura Invenção Brasileira, o primeiro credenciado pelo Ministério da Cultura no local, havia suspenso suas atividades temporariamente.

Diante disso, os grupos se reuniram e alugaram duas lojas que estavam paradas. O espaço ganhou vida com reformas e programação constantes – tudo feito pelas mãos da própria comunidade. Começaram pagando R$ 900,00 no primeiro ano, nos outros dois R$ 1000,00 e quando o dono anunciou que iria subir o valor com mais R$200, a situação ficou insustentável.

Com o fim do ECMV, em novembro de 2014, os grupos culturais voltaram a ficar sem lugar para desenvolver suas práticas. Nesse meio tempo, quando o ECMS ainda estava ativo, o Invenção retomou as atividades e esta funcionando até hoje. Entretanto, o ponto não comporta todas as diferentes e diversas demandas dos grupos locais.

“Um espaço a menos, algumas pessoas tinha ido embora, os aluguéis estavam aumentando e aí surgiu a ideia da ocupação”, conta Nara Oliveira (30), designer do Estúdio Gunga. Ela participou do abrir das portas das lojas abandonadas, mas hoje é somente uma colaboradora e parceira do MSV.

As discussões sobre ocupar espaços abandonados no conjunto de 84 lojas avançavam. O objetivo era no sentido de transformar as ruínas em lugares de trabalho, cultura e moradia.

No começo de 2015, iniciou-se diálogos com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que também realiza sua militância através da ocupação de espaços ociosos de várias cidades brasileiras e reivindicam o direito à moradia.

Na época, o MTST iria ocupar seis lugares na cidade ao mesmo tempo. As lojas abandonadas do Mercado Sul se tornaram a sétima dessas ocupações dentro do DF. “Realizamos pesquisas sobre quais lojas estavam a mais tempo abandonadas, a situação de água, luz, IPTU, estado físico e documentos para estudar e justificar em quais lojas entraríamos”, conta Nara.

A noite era chuvosa quando o coletivo entrou em sete lojas e um box à meia noite do dia 5 de fevereiro de 2015, “parecia um filme”, ri a designer. Ao abrir e entrar nas lojas, os ocupantes não poderiam mais sair. A partir daí, teriam que se movimentar constantemente com atividades culturais, educativas e comunitárias. Naquela madrugada, com o barulho e movimentação das portas de ferro se abrindo, chamaram a polícia militar.

“Chegaram e falamos que era uma ocupação, que morávamos e trabalhávamos aqui em volta. Que não dava mais para sustentar essa situação de ruínas e abandono”, descreve a designer. Nisso, os policiais entenderam que não era um movimento de roubo das lojas, e sim, que era um processo político que estava acontecendo no local.

“Tivemos uma discussão para explicar o que estava acontecendo”, relata a ex-ocupante. Ela conta que alguns policiais acharam tudo aquilo uma loucura e outros apoiavam o que estava acontecendo. “Boto fé, a população tem que fazer isso mesmo”, conta Nara, “tem que botar pra quebrar!”.

A articulação entre os movimentos de ocupação MTST e MSV não durou muito. Apesar de ambos realizarem ativismo por direito à cidade, o MSV trabalha uma relação peculiar da arte com a transformação urbana. O Mercado Sul Vive propõe reinventar vidas e seus territórios com cultura. No mesmo rumo, porém, de maneira diferente, os movimentos utilizam estratégias de ocupação para pressionar instâncias do poder público e privado.

“Na época, eles [MTST] passavam por alguns rachas internos e nós não entendemos muito o que estava acontecendo, fomos nos afastando, não sabíamos muito bem como lidar”, conta a apoiadora do MSV.

Nos primeiros meses de ocupação, os vínculos com o MTST se desataram. No entanto, de acordo com Nara Oliveira, foi um elo importante para potencializar a ação dos primeiros dias de ocupação, os mais incertos de permanência.

 

 

Abandono e consequências

“Mudou bastante o Mercado Sul, porque antigamente, antes de acontecer essas atividades culturais, era só marginalidade, pé de cana, pessoas de rua”, conta Heleno Alves (64), que chegou no Mercado Sul criança, aos dez anos em 1964. Há 9 anos, ele trabalha com tapeçaria em um box em frente a uma das lojas ocupadas. “Aí chegou a turma dos teatros e melhorou bastante o convívio aqui”, relata.

Heleno conta que o abandono era péssimo para o trabalho dele. Vez ou outra, bandidos arrombavam as portas de metal até o dono chegar e chamar a polícia para tirá-los. O tapeceiro também questiona os grandes períodos das portas fechadas: “se tinha dono e estava fechada, talvez o dono não necessitava, ne?”.

 

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